sábado, 12 de setembro de 2009

lashes of bones

o charco preso à beira da estrada contemplava o reflexo do céu e perguntava-se:
porque é que o azul do céu parece sempre mais longe que o cinzento das nuvens?
quando um pneu balbuciante lhe passou por cima, separando-o de si próprio.

gota -

______gota -

___________poça -

_________________gota -

_______estilhaço -

agora que o céu não tem reflexo em mim que faço deitado no chão?

o charco (agora gotas e estilhaços de poças) desaprendeu-se
e sem saber muito bem o que era e para o que servia foi estendendo os braços,
tanto os estendeu que os partiu, e cada novo braço ramificava-se,
e cada novo ramo enchia-se de luz. o charco

agora:

gota -

______gota -

____________ramos de braços -

____estilhaços de poças -

vestiu-se de estradas. rectas e curvas. desceu vales, subiu montes.
afogou fauna e flora na crista das suas ondas em forma de mãos,
cresceu e afundou-se em si mesmo. o charco, preso à beira da estrada,
encontrou um fim último depois de

gota -

___gota -

_______poça -

____________ondas estilhaçadas em braços -

_ ___embrulhadas em mãos sem sol para segurar -

engoliu o mundo tornando-se oceano.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

daqui vejo candeeiros suspensos no céu


embarquei a despedida num barco demasiado pequeno para os meus braços

decerto que se irá afundar numa rota traçada sobre uma superfície torcida,
pelo peso de corpos emaranhados. o mundo jamais saberá que lhe disse adeus,
agora esquecido na vastidão, afogado na escuridão baça
e perdido no silêncio de alamedas subaquáticas
fugido do mundo cá em cima e acorrentado à flora de um abismo sem fundo.
mas quem ouviria o meu adeus?
entre a fauna citadina que circula à velocidade da luz
em ruas e áleas perdidas nos olhos de quem lá passa...
o mundo é demasiado rápido para o meu passo
- (6/8) de compasso binário composto -
já ninguém dança assim. já ninguém fala assim.
agora quer-se rapidez nos movimentos.
pouco diz ao mundo,
a elegância e eloquência.
a beleza da calma no céu que, vaidosamente, admira o seu reflexo no rio.
pouco diz ao mundo,
a neblina que se espraia sonolentamente sobre a cidade ao cair do sol,
que se desvanece com o amanhecer de bocas,
esfomeadas por um stress em forma de cafeína.
enquanto lá - no fundo do mar,
onde o bulício dos mercados de rua e dos mercados da bolsa não se ouvem
e o arremessar de uma última voz
- presa na vastidão do negro e gelado manto -
se perde e ninguém sente a sua falta.
eu que tanto tinha para dizer.
os meus braços que tanto tinham para escrever.
as minhas pernas tanto tinham para desbravar nos picos mais altos do mundo.
fui descuidado em julgar que não seria necessária uma embarcação maior,
talvez tenha pecado pela suposta humildade das minhas palavras:
elas que agora servem para ancorar a minha despedida na última fronteira da terra.
um lugar onde o mundo não existe
e que sustém a respiração para que o tempo não dê conta dele.
como dizer que falhei por simples desleixe e menosprezo? -
atiçados pela ilusão de uma realidade
maior do que aquela fantasiada pela minha imaginação.
agora inclino-me sobre um jazigo esquecido entre o silêncio do precipício
e vocábulos amorfos trocados no tecto do mar.

segunda-feira, 15 de junho de 2009

15.06.09

escuto a morte lenta do monstro que trago ao peito
embrulho o seu silêncio
esquecendo-o num bolso qualquer

.

é irrefutável a tentação de correr pelos teus braços acima
mas o meu destino é o de acabar estilhaçado no chão
(em charcos formados por diademas poeirentos)
enquanto danças com o mundo ao teu colo

.

sábado, 23 de maio de 2009

A Árvore E A Nuvem


Há uma nuvem presa numa árvore

Há uma árvore presa a uma nuvem
Estamos nós presos à árvore e à nuvem
Presos no momento que é agora
Presos no sempre que é passado
Nós, a árvore e a nuvem
Presos.

A nuvem tenta separar-se da árvore
Mas esta prende-a nos seus ramos.
Tentamos separar-nos da árvore
Mas a nuvem somos nós.

A árvore tenta separar-se da terra
Mas a terra prende-lhe as raízes
A nuvem ri-se, irritando a árvore
Que lhe retribui o riso em fortes correntes ramificadas
Forçando as lágrimas da nuvem.

A terra regozija-se verdejante
E a nuvem sente-se mais leve
A árvore adivinha a nuvem a deslizar entre os seus ramos
E compreendendo isto a nuvem chora incessantemente
A árvore irrita-se porque a nuvem lhe escapa
E a terra agradece o seu pranto.

A nuvem solta-se da árvore
Deixando-a novamente sozinha,
Presa à terra:
A nuvem somos nós.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

a luz que nasce na noite

se amansares a noite saberás que o seu dorso finge uma pulsação
adormecida na tranquilidade do canibalismo que a consome.

finge,

finge uma trela (de curta-metragem) flagelada de autoritarismos
adornados por uma língua de sumptuosa eloquência.

finge,

e serás (aos olhos ofuscados dos teus fiéis) huris para sempre.


mas na noite nós vemos, sem deslumbramento, o que és:
uma clepsidra desidratada que se esgota em horas mortas
dentro de um templo conspurcado pela aragem ébria que a noite fermenta.

finge,

mas sabemos que vestes um traje de quimeras esfarrapadas;

tu, que agora te arrastas pelo chão poeirento da tua solidão.

quarta-feira, 13 de maio de 2009

as mãos que te calam os lábios

Deixa que marés de luz te encontrem
e preencham o vazio d'
----------------------------]os teus lábios[

O mundo irá ouvir-te, sonolento,
Mas aquiescerá ao som da tua
----------------------------]são a[ voz
Lembrando-se que em tempos também a teve,
Agora calejada pelo
---------------------]do[ caos
Que o rodeia.

Sobe o vale que te empareda
E abre o cofre que nos tomou como reféns,
Muda a surdina mundana
Enfeitada com cantos de sereias
------------------------------------------]afónicas

Não entregues este navio às
-----------------]são as tuas[ mãos
Distraídas do destino –
Ele que não compreende o desejo de liberdade
Envolto em saudosos
-----]já tão gastas de[ acenos.

terça-feira, 12 de maio de 2009

O Eterno Passageiro

o deslize de um carril catártico
que se entrega à fome ímpar de bocas solitárias,
pintadas em paisagens mortas de passageiros anónimos.
o consumo de horizontes em janelas baças,
corrompidas pelo gangrenar volátil do tempo
presas nos dedos que as percorrem,
sôfregos por um contacto:
maleável na sua índole.
querer viver eternamente nestas carruagens,
não ser mensageiro de olhares alheios.
saber partir para sentir o corpo ficar...
para trás, para trás, e cada vez mais para trás
até que o corpo não nos pertence mais,
pertence a camas de motéis baratos,
bancos de comboio, bancos de jardim,
pertence aos cabides onde deixo pendurada a memória do país que fui.
querer saber o que significa ser cidadão de todos os países do mundo,
sem ser de nenhum em particular,
reconhecer caras vizinhas
sabendo que amanhã as terei esquecido.
ser o país,
ser a cidade,
ser as ruas e as pessoas,
não ser turista.

domingo, 10 de agosto de 2008

A Pessoa Presa

.


orlas a alma para deixar o perigo lá fora
e poderes passar pelos fisemas venenosos
sem que estes te inoculem as toxinas

em tempos hesternos
as estilhas cravavam-se na tua pele
as ilhargas a descoberto deixavam-te frágil
um alvo fácil

e as vagas levavam-te o corpo
até ás férulas tiranas

hoje inalas o pólen
e voas para outra flor
outro recanto lauto
desconhecido por dedos cautelistas

estás livre


.

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Petrus Castrus - Ascenção e Queda (Crítica)

Os Petrus Castrus foram formados em 1971 pelos irmãos Castro (Pedro na voz e guitarra e José no baixo). A eles juntaram-se Júlio Pereira na guitarra e Rui Reis no teclado (ex-membros dos PlayBoys) e João Seixas na bateria. Lançaram dois EP’s (Marasmo e Tudo Isto E Mais), três singles (A Bananeira, Cândida e Agente Altamente Secreto) e dois LP’s (Mestre e Ascensão & Queda), antes do seu fim em 1980.

Mestre, o primeiro LP datado de 1973, usava como letras alguns poemas de Bocage, Alexandre O’Neill, Ary dos Santos, Fernando Pessoa e Sophia de Mello Breyner Anderson. A Comissão de Censura confiscou-lhes o disco por três meses devido ao facto terem gravado os poemas destes poetas.

Já após o 25 de Abril de 1974, lançam o seu segundo LP. O albúm Ascensão & Queda conta com as contribuições de Fernando Girão, Rui Serrão, Lena d'Água e Nuno Rodrigues. A influência do estado político em que a banda é formada está à vista nesta obra.

Ascenção & Queda é um trabalho conceptual que visa contar uma história musicalmente. O formato das músicas é em si bastante teatral. O canto narrativo alterna com o discurso directo em tom de canto por todo o albúm, acompanhado geralmente por poucos instrumentos ao mesmo tempo, ainda assim com riffs bastante complexos, num tom bastante dramático e épico. As músicas, compostas por pequenos segmentos de música independentes uns dos outros apenas ligados pelo contar de uma história, expandem-se entre cinco e sete minutos. A diversidade musical é notável, podendo-se encontrar teclados, cravo, sintetizadores, guitarras, pianos, baixo, bateria e percussão. A música progride bem, sem excessos. Não sendo uma obra genial, é um trabalho musical interessante que merece alguma atenção.

A história de Ascenção & Queda fala de uma revolução num reino que se assemelha a um medieval. Conta a história de um libertador/salvador que acaba por se corromper e cair, e é inevitável não se colocar a hipótese de isto ser uma metáfora para a política do Estado Novo. Embora se possa também identificar na história uma noção de ciclo sem fim (rei velho e corrupto é substituído por jovem salvador que acaba por se tornar velho e corrupto que será um dia substituído por um jovem).

Quando foi editado, este albúm foi um fracasso comercial e foi arrasado pela crítica da sua época. Recentemente, foi reeditado por uma empresa sul-coreana, e tem sido objecto de maior atenção por parte dos amantes de música progressiva.

Alentejo (O Funeral de Luís)

[escrito em conjunto com Daniel Paiva]

O dia 27 de Junho tornava-se assim, enquanto a memória dos homens e mulheres que ali viviam perdurasse, uma data angustiada na aldeia. Os raios de sol caíam, secos, a pique sobre o cemitério, a sua luz entrançando-se com a poeira da terra. O Padre proferia salmos arroucados que bailavam funestamente. Maria estava abraçada á cintura da sua mãe, com um vestido negro estéril, chorando como se caísse.A mãe de Luís continha as lágrimas salgadas, o seu esposo assentava a mão sobre a sua camisa preta, aproximando o corpo dela ao seu, sabendo que ela estava contrita e que pensava que de algum modo imperceptível isto era por sua culpa.

Os irmãos de Luís, Carlos e Filomena, não eram capazes de acreditar que o seu irmão ia ser privado de luz para sempre, envolto numa cama de cetim. Carlos congeminava já um plano para apanhar quem quer que tenha morto o seu irmão. Começou por se tentar lembrar de alguém que não gostasse de Luís - havia obviamente os colegas de escola com quem tinha rivalidades frívolas, mas nada de sério, nada ao ponto de assassinar. Tentou então pensar fora do seu círculo de amigos e houve uma pessoa que lhe assaltou o pensamento quase instantaneamente: Vasco Pereira Trindade, pai de Maria. Este fingia desconhecer o romance de Luís com a sua filha, mas na verdade estava a par de tudo e nunca aceitou bem o seu relacionamento. E enquanto Carlos se ocupava em manter a mente a trabalhar raivosamente Filomena tentava não pensar em nada, mas sempre que fechava os olhos imagens do seu irmão saltavam na sua memória. Não tinha como se esconder, não era tão vingativa como o seu irmão Carlos e com certeza não era como as suas tias que choravam por cima do caixão deixando vários rastos de pequenas cascatas no ébano. A tristeza de Filomena não cabia dentro de si, nem dentro deste dia de Junho, apertou o peito na esperança de a tornar mais pequena e menos espaçosa, mas ocupava-lhe todo o corpo, ameaçando rasgar-lhe a pele. Estes pensamentos escorriam nas sinapses dos enlutados de um modo tão substancioso que quase era possível ouvi-los como se fossem vozes.

O Padre, nas suas vestes brancas que baloiçavam conforme a brisa tépida, terminou a liturgia. O caixão principiou a ser enterrado.