domingo, 3 de agosto de 2008

Quando mundos Colidem (Parte I)

Quando me pediram para contar a todos como a humanidade mudou fiquei hesitante. Já não me lembrava ao certo das palavras de quem me tinha narrado o quase apocalipse certa vez. Passara tanto tempo e eu ainda não conseguia digerir com o cérebro aquilo que ainda mexia, de forma inequívoca, com o meu coração.
«Assuntos pendentes» – dizia eu evasivo, cada vez que questionavam a mudança das minhas feições.
«Vamos lá Cloto queremos ouvir de ti, aquilo que ouviste de alguém que certamente assistiu ao que queremos escutar» – dizia um homem bêbado de velho com barbas esbranquiçadas, cujos dentes, consumidos pelas trevas, conferiam ao soturno hálito um aroma do mais pútrido que o apodrecido tinha para oferecer e que se dizia murchar flores quase tão rápido quanto ele levava a engolir meio copo de rum de uma marca duvidosa, elaborado nas traseiras daquele bar, num alambique provavelmente ilegal.
«Deixa-te de complacências. Todos esperamos conhecer essa estória que fez do mundo o sítio que é hoje» – insistiu o taberneiro, gémeo na barba e no mau hálito do malcheiroso do velho..
Certo é que, com tanta insistência, não me pude escapar e lá tive que relatar à minha esfomeada audiência, com o máximo rigor possível, a estória de como o mundo quase acabou.
Já tinha sido cantada inúmeras vezes pelos poetas em várias cantigas condizentes com a sua falta de talento e cuja paixão endrominava o espírito, mas a todos eles faltava o toque de verdade e de beleza que só aqueles que se renderam aos factos possuíam no seu saber.
Ainda estava eu a reunir com os pensamentos os acontecimentos de há tanto tempo e já me apercebia no ar da ansiedade de todos aqueles que queriam, a acompanhar as suas refeições impregnadas de bolor, ouvir aquilo pelo qual as vozes circundantes reclamavam como só elas o sabiam fazer. Perante os olhares compenetrados não ousaria eu usufruir da mentira para ocultar a minha falta de memória, portanto achei melhor concentrar-me veementemente para que ninguém pudesse por em causa a minha justeza.
Procurei na minha cachimónia como começar.
«é bom que valha a pena ou teremos que tê-la de ti.» – insistiam essas vozes impacientes que nas frases deixavam escapulir a arte de um macaco a coçar o rabo e que curiosamente nada faziam por disfarçar a simplicidade nos seus modos.
Da mesma forma que lhes disse a eles, prometo que vos digo a vocês, testemunhas da minha desolação, tudo aquilo que se passou naquela altura em que se julgou que nada mais iria acontecer.
Parece-me a mim que, desde o dia em que Prometeu, a brincar com o barro criou o Homem e depois, afoito e orgulhoso com a sua criação, roubou aos deuses uma faísca do fogo para colocar na sua nobre criação uma acendalha de alma, nada aconteceu de tão importante. Muitas vezes me pergunto, o que diria o próprio Prometeu, aquele que amou o Homem ao ponto de desafiar os deuses preso três mil anos no seu cativeiro, se visse até onde o espírito daqueles Homens intransigentes, que se empenharam em escrever os seus nomes no nosso destino, foi para perpetuar a sua existência.
Conforme o compromisso estabelecido contei a todos os presentes o que a mim foi dito outrora por um senhor de quem me escapa o nome, no leito da sua morte. Agarrando-me pelo braço, com mais força do que aquela que calculei haver nele prometeu fazer chegar até mim a estória dos corações e mundos partidos. Fez-me prometer que não deixaria que os acontecimentos que me fossem relatados não caíssem no esquecimento nas palavras dos pensamentos, é por isso então que, sempre que me pedem, é com algum agrado que ilumino todos acerca das lutas do espírito e do coração.
«Chegou a horas de escutares, rapaz, aquilo que não vais deixar que o esquecimento apague. Na tua promessa, eu confio» No meu silêncio respeitoso ele viu a permissão para começar. E foi com as ultimas palavras dele que expliquei a todos o que o tal moribundo me contou com paixão da loucura antes a morte lhe apagasse os pensamentos e desmembrasse o caminho das memórias.


Iniciou relatando a forma de como um homem que vagueava pelos corredores do palácio à procura da solução para o seu problema, mas apenas encontrava corpos desfalecidos, cuja vida abandonara momentos antes. Do seu cativeiro, escapara com alguma vida, embora estivesse preocupado por, com aquele passo acelerado descontínuo, a dissipar rapidamente.
Já não se lembrava de como tinha começado o seu pesadelo, apenas se recordara de um dia adormecer e, de seguida, acordar acorrentado às grades escuras daquela prisão obscena.
Doía-lhe o crânio. A pancada que provavelmente levara ainda gritava no interior da cabeça.
Escapara mordendo a vida a um guarda que, inadvertidamente, colocou o seu pulso a jeito, de modo que os maxilares do futuro fugitivo haviam sido mais fortes que as veias do futuro cadáver. A forma como, de seguida, roubara a chave estava documentada em vários filmes de Hollywood.
Tentei, que explicasse melhor, porque nunca os tinha visto mas não acedeu continuando. Recomeçou no momento em que aquele fugitivo olhou para a janela e, por alguns segundos, contemplou a devastação que eclodia lá fora.
O Mundo 1º, o seu mundo, era um ténue reflexo daquilo que antes resplandecera. Pensou na sua terra natal enquanto a violência lhe invadia os olhos.
A Nova Terra era uma das divisões continentais do Mundo 1º. Grande Terra, Pequena Terra e Entre Terras completavam esse conjunto. Cada terra tinha, para si, os próprios brandos costumes, não repartindo qualquer autoridade, dado que assumiam que esta não pertencia a ninguém se não ao espírito que habitava por igual em todos. Já eram de há muito tempo, as histórias que relatavam guerras entre as irmãs terras, embora a maioria assumisse a forma de mito. Mesmo sendo díspar o tamanho de cada uma, imagina-se que não havia qualquer motivo de invejas entre elas. Tinham todas as suas próprias virtudes e, à luz disso, as suas próprias fraquezas. Era um mundo que todos tinham orgulho em chamar belo.
De entre as dissemelhanças entre as terras a variante principal, o que sobressaía mas não diferenciava, era contudo, o néctar da vida. A ambrósia espiritual que todas as manhãs lhes enobrecia o espírito. No ritual diário deslocavam-se ao Grande Armazém para assim tomarem uma dose de humanidade e de força.
Não eram filas silenciosas, aquelas que aguardavam a sua dose de purificação. Alguns cantavam alegremente enquanto outros se deliciavam com as notas musicais dispersas naquela atmosfera de pura alegria. Em todas as terras ela era partilhada e em todas ela reinava perene.
Entre os pensamentos nostálgicos das suas próprias cantigas, ouviu um barulho surdo. Assustou-se. As pernas obrigaram-no a correr no amplo corredor.
Ainda tinha na boca o sabor alucinante do sangue enquanto vagueava neles, promíscuos. Enquanto avançava mais devagar do que aquilo que os seus nervos diziam, tentava voltar ao pensamento entretanto perdido, até que sentiu, na pele, passos em sua direcção. Aparentemente, estava justificado o barulho que lhe trespassou a meditação. Os passos continuavam a aproximar-se no entanto ele não conseguia desvendar, no seu cérebro confuso, o que fazer. Como o cientista mais brilhante da sua geração que era e não sabia, não podia estar mais perdido.
Arriscou olhar de relance. Viu sombras incandescentes que formavam uma figura imperceptível. Perdoou-se a negligencia e continuou a avançar até dar de caras com a sombra desconhecida.
«Pouco vai adiantar fugir» – pensou com uma entoação racional tentando justificar a sua falta de instintos.
Rapidamente, apercebeu-se, que juntamente com os passos, havia uma face também governada pela confusão.
Olharam-se de alto a baixo à procura de saber o que fazer. Contemplaram-se silenciosos durante algum tempo até que se tornou óbvio que ambos eram foragidos. Não trocaram muitas palavras. Aparentemente encontravam-se em lugar seguro.
«Isto é uma ala secreta, poucos têm acesso a ela» – disse, com a voz trémula, o companheiro desvendado das sombras, de seu nome Barnabé.
Esta afirmação confortou-o um pouco. No entanto, os pontos de interrogação tomaram conta da sua cabeça pelo que precisava de algumas respostas para que pudesse perspectivar alternativas. Então, tentou saber o motivo de tudo aquilo. Não conseguia entender a violência que infectara primeiro o seu mundo e depois o seu corpo.
As cicatrizes clamavam respostas. «Que se passa afinal?»
Aquela sombra, agora mais clara, silenciou-o com a mão e preparou-se para lhe iluminar sobre aquela opacidade.
Explicou-lhe que nem sempre aquela terra se acendera com a escuridão maquiavélica que agora lambia as folhas outrora verdes.
Durante muito tempo, o povo da Grande Terra fora embebido com um néctar paternal, porém, faltava-lhe subtileza nos seus desígnios. As pessoas, no entanto, amavam aquele néctar como a sua vida, chamavam-lhe Papa de Aveia.
A Papa de Aveia saciava corpos imensos, mas já não dava o sabor que tanta gente queria da vida. A velhice não era conhecida pela sua misericórdia e, por isso, não foi da insatisfação que as coisas começaram a mudar. O Grande Armazém, cujo nome perdeu-se na História, começou a distribuir alternativas que as pessoas consumiam, primeiro tristemente, depois conformadas.
Foi então que, com naturalidade, surgiu o Nestum de Mel.
O Nestum de Mel era a mais maravilhosa criação daquele tempo. Diz-se que de sempre também.
A Grande Terra rejubilava perante o disparate de sabor efervescente. A loucura de paladar fazia o povo exaltar numa felicidade que jamais havia sido vista. Disse-se mais tarde, que a justificação para milhões de crianças de todo lado nascerem foi precisamente a oportunidade de sentirem nas papilas gustativas o doce sabor do mel do Nestum, do Nestum de Mel. Milhares fizeram-se crescer os dentes, para assim poderem trincar os delicados grânulos que não tinham sido invadidos pelo leite.
Suplantando a, agora obsoleta, Papa de Aveia, o Nestum de Mel reinou no coração de todos. Foram dias felizes, aqueles.
Os ecos da alegria latejaram em todo o Mundo 1º.
Na Pequena Terra a Farinha 33 concedeu o seu espaço, e onde antes estavam as caixas esverdeadas, pousavam agora, ilustrados em amarelo, os pacotes da novidade feliz. E sem dúvida, que foi com alegria que as pessoas tomaram para si o novo néctar, pois o grânulos, diziam, sintetizavam simpaticamente o seus espíritos.
Nas Entre Terras, foi com alguma desconfiança que receberam as novidades de um novo néctar redentor. A idade ainda não havia invadido a sua própria ambrósia. Estavam portanto algo reticentes em aceitar para si, o que de facto não era uma criação sua. Conta-se que começou devagar, quando algumas crianças, curiosas, se deleitaram calmamente com caixotes trazidos pelos tios que viajavam à procura de uma vida melhor e em pouco tempo até os adultos se regozijavam com brilho nos olhos e de pança cheia. O orgulho começou a ceder, e o sabor a disseminar. Não demorou muito até Entre Terras, espartana na sua maneira de ser, também sucumbir à deliciosa tentação. O Miluvit foi para sempre arredado das prateleiras e prontamente substituída. Correm rumores que foi ali, em Entre Terras, que foi fundado o Nestum de Figo, da mesma maneira que os romanos personalizaram os deuses que não eram os seus.
A Nova Terra era, desde sempre, um símbolo do progresso. Já há muito haviam exorcizado os Corn Flakes e, no seu lugar, colocado o achocolatado Pensal. Ali, procurava-se incessantemente o novo aroma que iria transformar os espíritos. Muitos ainda acreditam que foi com dor de desprezo que viram uma criação que não lhes pertencia a tomar conta do Mundo 1º; embora outros digam, em surdina, que foi ali mesmo que o Nestum de Mel foi criado por um homem cuja loucura assustava os céus. Os outros estudiosos, invejosos de raiva, iniciaram uma série de ataques pouco nobres que acabaram por ridicularizar aquela grande criação. Posteriormente, o cientista, amargurado, decidiu levar-se para longe da Nova Terra, com ele a pródiga invenção. O destino foi a Grande Terra, conhecida pela sua tolerância, quase tanto como a sua ignorância ingénua. Em qualquer dos casos, os catedráticos da Nova Terra, felizes com o desfecho, mantiveram-se fiéis à sua índole permaneceram nas investigações pois não assumiam que pudesse algum néctar sobrevir que não tivesse como berço as suas próprias mentes. Daí o desagrado criado perante o explosivo sucesso do mel.
Nunca houve uma confirmação, mas murmurava-se na rua que os esforços para desvendar um novo aroma nunca tinham sido tão determinados desde então.

Como se percebe, nem toda a gente estava feliz com a chegada do novo néctar. Uns habituados à certeza, ora das Papas de Aveia ora da Farinha 33, lamentavam-se nostálgicos rogando pragas ao Nestum, embora o devorassem enquanto mantinham a maioria daquelas conversas. Outros, simplesmente porque sim, rebelavam-se não admitindo nunca a superioridade do néctar que tanto queriam eliminar. Estes corações desenfreados, a quem o gelo invejava a frieza, não se contentavam. Irreverentes na sua maldade, invadiram-se de desejo para criar algo novo. Algo que roubasse, ao povo do qual faziam parte, a felicidade dos sentidos e a saciedade de aroma. Criaram infamemente um rival. Chamaram-no Cerelac.
Pela primeira vez em anos choveu. O mundo estava inquieto.
Ninguém se questionou quando o Nestum começou a ser racionalizado. Os tempos de fartura acabavam, era natural. Anos a fio a ser alvo da gula inveterada tinha, obviamente, tornado, a cada dia, a produção do Nestum, embora crescente, escassa, pensava o povo ingénuo.
Alguns desconfiaram quando começaram a ver uns, ao longe, a saborear uma mescla diferente do habitual.
Ficaram todos a saber quando, por milagre, o Nestum começou a ser arredado das estantes e depois das bocas de todos aqueles que o amavam com todo o seu esplendor.
As ruas choravam quietas e vazias.
Tornou-se num dilúvio, o pranto, quando foi, por decisão da força da Força, deliberado que a partir daquele dia dominava, o Cerelac, o coração de todos.
Está documentado que foi aí que estalaram as primeiras milícias. Como podia alguém querer retirar, da alma e do estômago, o sucinto sabor adocicado do subtil mel que regia os dourados flocos nos pratos rejubilantes?
Sem cor e sem brilho, o Cerelac conquistou, pela força, alguns adeptos à sua vitoriana palidez. Tornaram-se muitos os alguns, dominados. Imensos mais tarde, sob a ameaça às suas famílias, até chegarem a ser quase todos. Estes, perspicazes na sua maldade, cuspiram no papel o plano que levaria ao genocídio dos Nestum-ófilos de toda a Grande Terra. Correm rumores ainda hoje que foi nesse dia que o Diabo estremeceu, Deus resignou-se de raiva, enquanto profetas de todo o mundo clamavam que o apocalipse iria chegar sobre a forma da mais diabólica criação a que o espírito humano se concedeu.
Desde que outrora, por desígnios bélicos, o Ovomaltine havia sido banido da Pequena Terra uma tal ameaça não trincava os nobres espíritos terráqueos. Nessa altura todos forçaram-se a respeitar o Nesquick, reverenciando-o no tempo que parecia ser para sempre. Claro que ninguém chorou, quando anos mais tarde, o mesmo Nesquick foi sorrateiramente despojado do seu trono quando o Cola Cau decidiu invadir os sonhos de todos para seguidamente, não muito tempo depois, se deixar dominar pelo aristocrático Suchard Express, que acabou por se seduzir ao Ovomaltine, que não hesitou em, pelas mãos dos seus adeptos, reinar novamente. E nessa sucessão de disputas a Terra Pequena, já no seu nome minúscula, tornou-se ínfima aos olhos de todos.
A confusão estava lançada.
Os, cada vez menos, lúcidos ao Nestum tentaram combater com as suas almas aquela profícua ameaça. Em vão, resistiram o que pareceram apenas segundos.
A história dirá que foi uma guerra fácil.
Partiram da Grande Terra os instrumentos que desenharam o caos nos seus vizinhos. Cedo, todo o Mundo 1º estava dominado pelo o incipiente Cerelac.
Já não havia lágrimas para chorar.
Havia, todavia, a esperança a rondar.
A Nova Terra não se tornara completamente refém. Algures, um foco de resistência passiva mantinha-se. Presumia-se que não fosse o único, pois era difícil justificar as consecutivas explosões no transporte de Cerelac para todos os lugares do Mundo 1º.
Começava a fazer sentido.

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