domingo, 10 de agosto de 2008
A Pessoa Presa
orlas a alma para deixar o perigo lá fora
e poderes passar pelos fisemas venenosos
sem que estes te inoculem as toxinas
em tempos hesternos
as estilhas cravavam-se na tua pele
as ilhargas a descoberto deixavam-te frágil
um alvo fácil
e as vagas levavam-te o corpo
até ás férulas tiranas
hoje inalas o pólen
e voas para outra flor
outro recanto lauto
desconhecido por dedos cautelistas
estás livre
.
sexta-feira, 8 de agosto de 2008
Petrus Castrus - Ascenção e Queda (Crítica)
Os Petrus Castrus foram formados em 1971 pelos irmãos Castro (Pedro na voz e guitarra e José no baixo). A eles juntaram-se Júlio Pereira na guitarra e Rui Reis no teclado (ex-membros dos PlayBoys) e João Seixas na bateria. Lançaram dois EP’s (Marasmo e Tudo Isto E Mais), três singles (A Bananeira, Cândida e Agente Altamente Secreto) e dois LP’s (Mestre e Ascensão & Queda), antes do seu fim em 1980.
Mestre, o primeiro LP datado de 1973, usava como letras alguns poemas de Bocage, Alexandre O’Neill, Ary dos Santos, Fernando Pessoa e Sophia de Mello Breyner Anderson. A Comissão de Censura confiscou-lhes o disco por três meses devido ao facto terem gravado os poemas destes poetas.
Já após o 25 de Abril de 1974, lançam o seu segundo LP. O albúm Ascensão & Queda conta com as contribuições de Fernando Girão, Rui Serrão, Lena d'Água e Nuno Rodrigues. A influência do estado político em que a banda é formada está à vista nesta obra.
Ascenção & Queda é um trabalho conceptual que visa contar uma história musicalmente. O formato das músicas é em si bastante teatral. O canto narrativo alterna com o discurso directo em tom de canto por todo o albúm, acompanhado geralmente por poucos instrumentos ao mesmo tempo, ainda assim com riffs bastante complexos, num tom bastante dramático e épico. As músicas, compostas por pequenos segmentos de música independentes uns dos outros apenas ligados pelo contar de uma história, expandem-se entre cinco e sete minutos. A diversidade musical é notável, podendo-se encontrar teclados, cravo, sintetizadores, guitarras, pianos, baixo, bateria e percussão. A música progride bem, sem excessos. Não sendo uma obra genial, é um trabalho musical interessante que merece alguma atenção.
A história de Ascenção & Queda fala de uma revolução num reino que se assemelha a um medieval. Conta a história de um libertador/salvador que acaba por se corromper e cair, e é inevitável não se colocar a hipótese de isto ser uma metáfora para a política do Estado Novo. Embora se possa também identificar na história uma noção de ciclo sem fim (rei velho e corrupto é substituído por jovem salvador que acaba por se tornar velho e corrupto que será um dia substituído por um jovem).
Quando foi editado, este albúm foi um fracasso comercial e foi arrasado pela crítica da sua época. Recentemente, foi reeditado por uma empresa sul-coreana, e tem sido objecto de maior atenção por parte dos amantes de música progressiva.
Alentejo (O Funeral de Luís)
O dia 27 de Junho tornava-se assim, enquanto a memória dos homens e mulheres que ali viviam perdurasse, uma data angustiada na aldeia. Os raios de sol caíam, secos, a pique sobre o cemitério, a sua luz entrançando-se com a poeira da terra. O Padre proferia salmos arroucados que bailavam funestamente. Maria estava abraçada á cintura da sua mãe, com um vestido negro estéril, chorando como se caísse.A mãe de Luís continha as lágrimas salgadas, o seu esposo assentava a mão sobre a sua camisa preta, aproximando o corpo dela ao seu, sabendo que ela estava contrita e que pensava que de algum modo imperceptível isto era por sua culpa.
Os irmãos de Luís, Carlos e Filomena, não eram capazes de acreditar que o seu irmão ia ser privado de luz para sempre, envolto numa cama de cetim. Carlos congeminava já um plano para apanhar quem quer que tenha morto o seu irmão. Começou por se tentar lembrar de alguém que não gostasse de Luís - havia obviamente os colegas de escola com quem tinha rivalidades frívolas, mas nada de sério, nada ao ponto de assassinar. Tentou então pensar fora do seu círculo de amigos e houve uma pessoa que lhe assaltou o pensamento quase instantaneamente: Vasco Pereira Trindade, pai de Maria. Este fingia desconhecer o romance de Luís com a sua filha, mas na verdade estava a par de tudo e nunca aceitou bem o seu relacionamento. E enquanto Carlos se ocupava em manter a mente a trabalhar raivosamente Filomena tentava não pensar em nada, mas sempre que fechava os olhos imagens do seu irmão saltavam na sua memória. Não tinha como se esconder, não era tão vingativa como o seu irmão Carlos e com certeza não era como as suas tias que choravam por cima do caixão deixando vários rastos de pequenas cascatas no ébano. A tristeza de Filomena não cabia dentro de si, nem dentro deste dia de Junho, apertou o peito na esperança de a tornar mais pequena e menos espaçosa, mas ocupava-lhe todo o corpo, ameaçando rasgar-lhe a pele. Estes pensamentos escorriam nas sinapses dos enlutados de um modo tão substancioso que quase era possível ouvi-los como se fossem vozes.
O Padre, nas suas vestes brancas que baloiçavam conforme a brisa tépida, terminou a liturgia. O caixão principiou a ser enterrado.
Interlúdio De Uma Noite De Chuva
com os lençóis de cetim deste quarto invisível
mas não fui capaz de almiscarar os teus sentidos
conspurcados pelo suor e o cheiro a cigarros mal apagados pela pressa
passei o veludo do vinho pelos lábios na tentativa de aquecer a alma deste dia frio
enquanto despedaçavas mais um bombom saboreando o licor que te escorregava garganta abaixo
deixando suspenso no ar um suspiro de prazer no mesmo momento em que trincavas a cereja envolta no quente licor
olhei-te nos olhos como quem procura um farol no meio do nevoeiro e encontrei o meu caminho no oceano dos teus cabelos
desci até o teu porto seguro e por lá fiquei o resto da vida
a tentar juntar as gotas de seda com o cetim do quarto.
quinta-feira, 7 de agosto de 2008
Descer a Calçada Da Glória ás 16:00
invade o espectro sonoro e somos
crianças perdidas em campos de gramíneas
á procura de casa
somos
um berlinde numa rampa
que vai de uma madrugada secreta
a uma noite indiscreta
o divino existe
diria eu
também neste cal estulto
em consonância com as nuvens pálidas
que assoreiam
o azul
que desliza para dentro das nossas gargantas
as mãos suaves do vento
cofiam a relva
dos grandes espaços abertos dos teus olhos
quase poderia jurar que não existe hardware no mundo
que chegámos agora a este planeta
as telhas fervilham
ao sol que cumpre o seu ritual diário
de gozar connosco lá do alto
e entre as paralaxes
que pouco mais nos ajudam a perceber
senão
que o mundo é dificil de perceber
está a tua voz a detonar-se
um gato mia
de onde não o podemos ver
como se do fundo de uma ladeira
como se atrás do nosso pânico
.
R.E.M. - Accelerate (Crítica)
Accelerate é o décimo-quarto albúm de estúdio da banda originária do estado da Geórgia dos EUA, R.E.M. Passaram quatro anos desde o último albúm da banda, Around The Sun, que teve péssimas críticas e vendas muito fracas (240,000 albúns nos EUA). Segundo Peter Buck, o guitarrista da banda, se este tivesse sido tão mau como o último, a banda terminaria a sua carreira. Felizmente, não o é.
A escolha de Jacknife Lee como produtor de Accelerate foi uma escolha positiva. A juntar aos anteriores bons trabalhos de Lee com os Editors (An End Has A Start), os The Hives (The Black And White Album), os Snow Patrol (Final Straw e Eyes Open) e os Bloc Party (A Weekend In The City), Accelerate mostra ser um trabalho coeso e polido e confirma a competência do produtor.
Desde as primeiras notas de Living Well Is The Best Revenge, a primeira música do albúm, nota-se que o grupo liderado por Michael Stipe está interessado em afastar-se das baladas melódicas e melancólicas dos últimos dois albúns (Reveal e Around The Sun). As primeiras três faixas assumem um ritmo vivo e apenas em Hollow Man, a quarta faixa, o albúm começa a abrandar o ritmo. A partir daí, apenas três baladas existem neste albúm, Houston, Until The Day Is Done e Sing for The Submarine. Quase todo o albúm é um retorno aos ritmos post-punk que a banda ostentava na década de 80.
Pela primeira vez num albúm de R.E.M. a distorção das guitarras são devidamente exploradas, incluindo sons novos à música de R.E.M., com laivos de grunge e alt-rock. O trabalho de Bill Barry, o baterista, é finalmente visível de novo e em muito bom plano. Pianos e teclados são cuidadosamente inseridos nas músicas sem causar sobreposições mal conseguidas, mas no plano geral é um albúm bastante simples e melódico. As letras de Michael Stipe, segundo ele influenciadas pelo estado da nação norte-americana, falam de solidão e prisão enquanto ilustram a vida numa sociedade de informação por vezes difusa.
No plano comercial, Accelerate já atingiu o número 1 nas tabelas de vendas do Reino Unido, do Canada, da Irlanda, da Noruega e da Bélgica, e atingiu o número 2 na tabela de vendas da Billboard.
domingo, 3 de agosto de 2008
Quando mundos Colidem (Parte I)
«Assuntos pendentes» – dizia eu evasivo, cada vez que questionavam a mudança das minhas feições.
«Vamos lá Cloto queremos ouvir de ti, aquilo que ouviste de alguém que certamente assistiu ao que queremos escutar» – dizia um homem bêbado de velho com barbas esbranquiçadas, cujos dentes, consumidos pelas trevas, conferiam ao soturno hálito um aroma do mais pútrido que o apodrecido tinha para oferecer e que se dizia murchar flores quase tão rápido quanto ele levava a engolir meio copo de rum de uma marca duvidosa, elaborado nas traseiras daquele bar, num alambique provavelmente ilegal.
«Deixa-te de complacências. Todos esperamos conhecer essa estória que fez do mundo o sítio que é hoje» – insistiu o taberneiro, gémeo na barba e no mau hálito do malcheiroso do velho..
Certo é que, com tanta insistência, não me pude escapar e lá tive que relatar à minha esfomeada audiência, com o máximo rigor possível, a estória de como o mundo quase acabou.
Já tinha sido cantada inúmeras vezes pelos poetas em várias cantigas condizentes com a sua falta de talento e cuja paixão endrominava o espírito, mas a todos eles faltava o toque de verdade e de beleza que só aqueles que se renderam aos factos possuíam no seu saber.
Ainda estava eu a reunir com os pensamentos os acontecimentos de há tanto tempo e já me apercebia no ar da ansiedade de todos aqueles que queriam, a acompanhar as suas refeições impregnadas de bolor, ouvir aquilo pelo qual as vozes circundantes reclamavam como só elas o sabiam fazer. Perante os olhares compenetrados não ousaria eu usufruir da mentira para ocultar a minha falta de memória, portanto achei melhor concentrar-me veementemente para que ninguém pudesse por em causa a minha justeza.
Procurei na minha cachimónia como começar.
«é bom que valha a pena ou teremos que tê-la de ti.» – insistiam essas vozes impacientes que nas frases deixavam escapulir a arte de um macaco a coçar o rabo e que curiosamente nada faziam por disfarçar a simplicidade nos seus modos.
Da mesma forma que lhes disse a eles, prometo que vos digo a vocês, testemunhas da minha desolação, tudo aquilo que se passou naquela altura em que se julgou que nada mais iria acontecer.
Parece-me a mim que, desde o dia em que Prometeu, a brincar com o barro criou o Homem e depois, afoito e orgulhoso com a sua criação, roubou aos deuses uma faísca do fogo para colocar na sua nobre criação uma acendalha de alma, nada aconteceu de tão importante. Muitas vezes me pergunto, o que diria o próprio Prometeu, aquele que amou o Homem ao ponto de desafiar os deuses preso três mil anos no seu cativeiro, se visse até onde o espírito daqueles Homens intransigentes, que se empenharam em escrever os seus nomes no nosso destino, foi para perpetuar a sua existência.
Conforme o compromisso estabelecido contei a todos os presentes o que a mim foi dito outrora por um senhor de quem me escapa o nome, no leito da sua morte. Agarrando-me pelo braço, com mais força do que aquela que calculei haver nele prometeu fazer chegar até mim a estória dos corações e mundos partidos. Fez-me prometer que não deixaria que os acontecimentos que me fossem relatados não caíssem no esquecimento nas palavras dos pensamentos, é por isso então que, sempre que me pedem, é com algum agrado que ilumino todos acerca das lutas do espírito e do coração.
«Chegou a horas de escutares, rapaz, aquilo que não vais deixar que o esquecimento apague. Na tua promessa, eu confio» No meu silêncio respeitoso ele viu a permissão para começar. E foi com as ultimas palavras dele que expliquei a todos o que o tal moribundo me contou com paixão da loucura antes a morte lhe apagasse os pensamentos e desmembrasse o caminho das memórias.
Iniciou relatando a forma de como um homem que vagueava pelos corredores do palácio à procura da solução para o seu problema, mas apenas encontrava corpos desfalecidos, cuja vida abandonara momentos antes. Do seu cativeiro, escapara com alguma vida, embora estivesse preocupado por, com aquele passo acelerado descontínuo, a dissipar rapidamente.
Já não se lembrava de como tinha começado o seu pesadelo, apenas se recordara de um dia adormecer e, de seguida, acordar acorrentado às grades escuras daquela prisão obscena.
Doía-lhe o crânio. A pancada que provavelmente levara ainda gritava no interior da cabeça.
Escapara mordendo a vida a um guarda que, inadvertidamente, colocou o seu pulso a jeito, de modo que os maxilares do futuro fugitivo haviam sido mais fortes que as veias do futuro cadáver. A forma como, de seguida, roubara a chave estava documentada em vários filmes de Hollywood.
Tentei, que explicasse melhor, porque nunca os tinha visto mas não acedeu continuando. Recomeçou no momento em que aquele fugitivo olhou para a janela e, por alguns segundos, contemplou a devastação que eclodia lá fora.
O Mundo 1º, o seu mundo, era um ténue reflexo daquilo que antes resplandecera. Pensou na sua terra natal enquanto a violência lhe invadia os olhos.
A Nova Terra era uma das divisões continentais do Mundo 1º. Grande Terra, Pequena Terra e Entre Terras completavam esse conjunto. Cada terra tinha, para si, os próprios brandos costumes, não repartindo qualquer autoridade, dado que assumiam que esta não pertencia a ninguém se não ao espírito que habitava por igual em todos. Já eram de há muito tempo, as histórias que relatavam guerras entre as irmãs terras, embora a maioria assumisse a forma de mito. Mesmo sendo díspar o tamanho de cada uma, imagina-se que não havia qualquer motivo de invejas entre elas. Tinham todas as suas próprias virtudes e, à luz disso, as suas próprias fraquezas. Era um mundo que todos tinham orgulho em chamar belo.
De entre as dissemelhanças entre as terras a variante principal, o que sobressaía mas não diferenciava, era contudo, o néctar da vida. A ambrósia espiritual que todas as manhãs lhes enobrecia o espírito. No ritual diário deslocavam-se ao Grande Armazém para assim tomarem uma dose de humanidade e de força.
Não eram filas silenciosas, aquelas que aguardavam a sua dose de purificação. Alguns cantavam alegremente enquanto outros se deliciavam com as notas musicais dispersas naquela atmosfera de pura alegria. Em todas as terras ela era partilhada e em todas ela reinava perene.
Entre os pensamentos nostálgicos das suas próprias cantigas, ouviu um barulho surdo. Assustou-se. As pernas obrigaram-no a correr no amplo corredor.
Ainda tinha na boca o sabor alucinante do sangue enquanto vagueava neles, promíscuos. Enquanto avançava mais devagar do que aquilo que os seus nervos diziam, tentava voltar ao pensamento entretanto perdido, até que sentiu, na pele, passos em sua direcção. Aparentemente, estava justificado o barulho que lhe trespassou a meditação. Os passos continuavam a aproximar-se no entanto ele não conseguia desvendar, no seu cérebro confuso, o que fazer. Como o cientista mais brilhante da sua geração que era e não sabia, não podia estar mais perdido.
Arriscou olhar de relance. Viu sombras incandescentes que formavam uma figura imperceptível. Perdoou-se a negligencia e continuou a avançar até dar de caras com a sombra desconhecida.
«Pouco vai adiantar fugir» – pensou com uma entoação racional tentando justificar a sua falta de instintos.
Rapidamente, apercebeu-se, que juntamente com os passos, havia uma face também governada pela confusão.
Olharam-se de alto a baixo à procura de saber o que fazer. Contemplaram-se silenciosos durante algum tempo até que se tornou óbvio que ambos eram foragidos. Não trocaram muitas palavras. Aparentemente encontravam-se em lugar seguro.
«Isto é uma ala secreta, poucos têm acesso a ela» – disse, com a voz trémula, o companheiro desvendado das sombras, de seu nome Barnabé.
Esta afirmação confortou-o um pouco. No entanto, os pontos de interrogação tomaram conta da sua cabeça pelo que precisava de algumas respostas para que pudesse perspectivar alternativas. Então, tentou saber o motivo de tudo aquilo. Não conseguia entender a violência que infectara primeiro o seu mundo e depois o seu corpo.
As cicatrizes clamavam respostas. «Que se passa afinal?»
Aquela sombra, agora mais clara, silenciou-o com a mão e preparou-se para lhe iluminar sobre aquela opacidade.
Explicou-lhe que nem sempre aquela terra se acendera com a escuridão maquiavélica que agora lambia as folhas outrora verdes.
Durante muito tempo, o povo da Grande Terra fora embebido com um néctar paternal, porém, faltava-lhe subtileza nos seus desígnios. As pessoas, no entanto, amavam aquele néctar como a sua vida, chamavam-lhe Papa de Aveia.
A Papa de Aveia saciava corpos imensos, mas já não dava o sabor que tanta gente queria da vida. A velhice não era conhecida pela sua misericórdia e, por isso, não foi da insatisfação que as coisas começaram a mudar. O Grande Armazém, cujo nome perdeu-se na História, começou a distribuir alternativas que as pessoas consumiam, primeiro tristemente, depois conformadas.
Foi então que, com naturalidade, surgiu o Nestum de Mel.
O Nestum de Mel era a mais maravilhosa criação daquele tempo. Diz-se que de sempre também.
A Grande Terra rejubilava perante o disparate de sabor efervescente. A loucura de paladar fazia o povo exaltar numa felicidade que jamais havia sido vista. Disse-se mais tarde, que a justificação para milhões de crianças de todo lado nascerem foi precisamente a oportunidade de sentirem nas papilas gustativas o doce sabor do mel do Nestum, do Nestum de Mel. Milhares fizeram-se crescer os dentes, para assim poderem trincar os delicados grânulos que não tinham sido invadidos pelo leite.
Suplantando a, agora obsoleta, Papa de Aveia, o Nestum de Mel reinou no coração de todos. Foram dias felizes, aqueles.
Os ecos da alegria latejaram em todo o Mundo 1º.
Na Pequena Terra a Farinha 33 concedeu o seu espaço, e onde antes estavam as caixas esverdeadas, pousavam agora, ilustrados em amarelo, os pacotes da novidade feliz. E sem dúvida, que foi com alegria que as pessoas tomaram para si o novo néctar, pois o grânulos, diziam, sintetizavam simpaticamente o seus espíritos.
Nas Entre Terras, foi com alguma desconfiança que receberam as novidades de um novo néctar redentor. A idade ainda não havia invadido a sua própria ambrósia. Estavam portanto algo reticentes em aceitar para si, o que de facto não era uma criação sua. Conta-se que começou devagar, quando algumas crianças, curiosas, se deleitaram calmamente com caixotes trazidos pelos tios que viajavam à procura de uma vida melhor e em pouco tempo até os adultos se regozijavam com brilho nos olhos e de pança cheia. O orgulho começou a ceder, e o sabor a disseminar. Não demorou muito até Entre Terras, espartana na sua maneira de ser, também sucumbir à deliciosa tentação. O Miluvit foi para sempre arredado das prateleiras e prontamente substituída. Correm rumores que foi ali, em Entre Terras, que foi fundado o Nestum de Figo, da mesma maneira que os romanos personalizaram os deuses que não eram os seus.
A Nova Terra era, desde sempre, um símbolo do progresso. Já há muito haviam exorcizado os Corn Flakes e, no seu lugar, colocado o achocolatado Pensal. Ali, procurava-se incessantemente o novo aroma que iria transformar os espíritos. Muitos ainda acreditam que foi com dor de desprezo que viram uma criação que não lhes pertencia a tomar conta do Mundo 1º; embora outros digam, em surdina, que foi ali mesmo que o Nestum de Mel foi criado por um homem cuja loucura assustava os céus. Os outros estudiosos, invejosos de raiva, iniciaram uma série de ataques pouco nobres que acabaram por ridicularizar aquela grande criação. Posteriormente, o cientista, amargurado, decidiu levar-se para longe da Nova Terra, com ele a pródiga invenção. O destino foi a Grande Terra, conhecida pela sua tolerância, quase tanto como a sua ignorância ingénua. Em qualquer dos casos, os catedráticos da Nova Terra, felizes com o desfecho, mantiveram-se fiéis à sua índole permaneceram nas investigações pois não assumiam que pudesse algum néctar sobrevir que não tivesse como berço as suas próprias mentes. Daí o desagrado criado perante o explosivo sucesso do mel.
Nunca houve uma confirmação, mas murmurava-se na rua que os esforços para desvendar um novo aroma nunca tinham sido tão determinados desde então.
Como se percebe, nem toda a gente estava feliz com a chegada do novo néctar. Uns habituados à certeza, ora das Papas de Aveia ora da Farinha 33, lamentavam-se nostálgicos rogando pragas ao Nestum, embora o devorassem enquanto mantinham a maioria daquelas conversas. Outros, simplesmente porque sim, rebelavam-se não admitindo nunca a superioridade do néctar que tanto queriam eliminar. Estes corações desenfreados, a quem o gelo invejava a frieza, não se contentavam. Irreverentes na sua maldade, invadiram-se de desejo para criar algo novo. Algo que roubasse, ao povo do qual faziam parte, a felicidade dos sentidos e a saciedade de aroma. Criaram infamemente um rival. Chamaram-no Cerelac.
Pela primeira vez em anos choveu. O mundo estava inquieto.
Ninguém se questionou quando o Nestum começou a ser racionalizado. Os tempos de fartura acabavam, era natural. Anos a fio a ser alvo da gula inveterada tinha, obviamente, tornado, a cada dia, a produção do Nestum, embora crescente, escassa, pensava o povo ingénuo.
Alguns desconfiaram quando começaram a ver uns, ao longe, a saborear uma mescla diferente do habitual.
Ficaram todos a saber quando, por milagre, o Nestum começou a ser arredado das estantes e depois das bocas de todos aqueles que o amavam com todo o seu esplendor.
As ruas choravam quietas e vazias.
Tornou-se num dilúvio, o pranto, quando foi, por decisão da força da Força, deliberado que a partir daquele dia dominava, o Cerelac, o coração de todos.
Está documentado que foi aí que estalaram as primeiras milícias. Como podia alguém querer retirar, da alma e do estômago, o sucinto sabor adocicado do subtil mel que regia os dourados flocos nos pratos rejubilantes?
Sem cor e sem brilho, o Cerelac conquistou, pela força, alguns adeptos à sua vitoriana palidez. Tornaram-se muitos os alguns, dominados. Imensos mais tarde, sob a ameaça às suas famílias, até chegarem a ser quase todos. Estes, perspicazes na sua maldade, cuspiram no papel o plano que levaria ao genocídio dos Nestum-ófilos de toda a Grande Terra. Correm rumores ainda hoje que foi nesse dia que o Diabo estremeceu, Deus resignou-se de raiva, enquanto profetas de todo o mundo clamavam que o apocalipse iria chegar sobre a forma da mais diabólica criação a que o espírito humano se concedeu.
Desde que outrora, por desígnios bélicos, o Ovomaltine havia sido banido da Pequena Terra uma tal ameaça não trincava os nobres espíritos terráqueos. Nessa altura todos forçaram-se a respeitar o Nesquick, reverenciando-o no tempo que parecia ser para sempre. Claro que ninguém chorou, quando anos mais tarde, o mesmo Nesquick foi sorrateiramente despojado do seu trono quando o Cola Cau decidiu invadir os sonhos de todos para seguidamente, não muito tempo depois, se deixar dominar pelo aristocrático Suchard Express, que acabou por se seduzir ao Ovomaltine, que não hesitou em, pelas mãos dos seus adeptos, reinar novamente. E nessa sucessão de disputas a Terra Pequena, já no seu nome minúscula, tornou-se ínfima aos olhos de todos.
A confusão estava lançada.
Os, cada vez menos, lúcidos ao Nestum tentaram combater com as suas almas aquela profícua ameaça. Em vão, resistiram o que pareceram apenas segundos.
A história dirá que foi uma guerra fácil.
Partiram da Grande Terra os instrumentos que desenharam o caos nos seus vizinhos. Cedo, todo o Mundo 1º estava dominado pelo o incipiente Cerelac.
Já não havia lágrimas para chorar.
Havia, todavia, a esperança a rondar.
A Nova Terra não se tornara completamente refém. Algures, um foco de resistência passiva mantinha-se. Presumia-se que não fosse o único, pois era difícil justificar as consecutivas explosões no transporte de Cerelac para todos os lugares do Mundo 1º.
Começava a fazer sentido.
quarta-feira, 2 de julho de 2008
One Lonely Visitor
O caminho era longo. Molhado por cerca de 30 minutos chuvosos de curvas e descidas e mais curvas e subidas, descidas ao contrário.
O que me esperava no final era o mesmo de sempre, a compensação. Nada por todo o trabalho feito.
Deixei-me levar pelos solavancos, pouco tempo depois aquela dança era já aprazível de tal forma que fê-la tocar-me.
Aí, sacudido pelo toque, reparei que não estava sozinho.
Não.
Estava acompanhado por uma desconhecida igual a tantas, tão diferente na sua similitude.
O jogo dos olhos começou logo ali. Tentámos esconder o interesse sem mostrar frieza ou ignorância à pessoa ao lado. O mais difícil estava feito.
A viagem continuava sem percalços. O motorista falava com passageiros indissociáveis daqueles pedaços de metal, todos tão habituais como os bancos em que se sentavam. Passageiros em nada transitórios.
A mão levantou-se, ganhando vida própria.
Nada pude fazer senão observá-la atentamente.
Desviou-se do percurso inicial como quem procura o caminho certo. Se vontade não tivesse a pulsação que me ladeava tê-la-ia puxado para si, ela, criando forças gravitacionais às quais não poderia escapar.
Pousou-a finalmente de forma suave, acariciando a sua contraparte, eu, serenamente.
Os olhos não se cruzam, jamais.
A cumplicidade não era apenas aparente. A verdade estava aos olhos de quem a quisesse ver e nenhum de nós a escondia. A tempestividade foi o requisito para o nosso romance causal, mas as testemunhas não se fizeram ouvir. Se não houve qualquer prova quem acreditaria?
O nosso momento veio. Deixou-nos saboreá-lo e abandonou-nos como se nunca tivesse chegado e mudado as nossas vidas, pelo menos naquele dia.
Não foi o discurso, nem o meu nem o dela. Acabou por ser o verde na paisagem, o cinzento da paisagem, a poluição da paisagem, o escuro no céu, os solavancos da estrada e talvez o vento que entrava pela janela aberta.
Essas foram as nossas testemunhas e sei que e alguma forma foram nossas, as testemunhas que quisemos guardar no toque.
A pele atestou o tesouro, os olhos jamais.
Próxima paragem: a minha compensação.
Que nos resta?
Que nos espera?
Foi um belo romance romanceado pelos melhores romancistas de que há memória: nós os dois.
Cúmplices da nossa solidão, tu da tua e eu da minha. Cúmplices por fim.
Saí sem nunca lhe ver a face, sem fingir que pareceu ser para sempre o tempo que tinha olhado para ela.
terça-feira, 1 de julho de 2008
Tempo
tempo que precisas para viver
tempo que pensas ter quando ainda mal andas
tempo que teima em não passar
tempo que morre lentamente no relógio
tens todo o tempo do mundo
[cresces enquanto o tempo cessa]
acordas de manhã com a esperança de um novo dia
chegas à cozinha e já é noite
o tempo não te deixa tempo suficiente para ser
tempo que escasseia e que se dilui em falhanço
atrás de falhanço,
porque o tempo não te dá tempo para vitórias
tempo que passa sem te aperceberes
[cresces mais um pouco e o tempo em ti encolhe]
tempo que não te deixa viver
tempo de namorar, tempo de casar
tempo de discussão
o primeiro filho; tempo de não dormir, tempo de não ter tempo
tempo de viver a correr
tempo que vive a correr
tempo de pensar em tudo o que não fizeste por não teres tempo
tempo de arrependimento
[tempo de idade adulta]
porque não tiveste tempo para pensar nas consequências
e as consequências não te deram tempo para pensar em soluções
tempo de investir no futuro do teu filho
tempo da família em primeiro lugar
tempo de não teres tempo para ser
[tempo de andar arqueado]
quando já só esperas a morte e tens tempo para pensar
talvez o tempo não tenha sido o suficiente
mas transformaste-o da melhor maneira
e aí sabes que o tempo foi sempre igual
tu é que andaste mais depressa do que devias
tu é que apressaste a vida
quiseste ver o mundo antes de ele se formar no teu
e eis-te agora a baloiçar a vida na ínfima linha que te resta
o tempo foi teu,
sê agora.
segunda-feira, 30 de junho de 2008
It's a whole new millenium, baby
tentei encontrar o meu caminho
através das miríades de luzes,
dos bares e dos copos de vinho,
as modernas plásticas urzes.
mas perdi-me neste labirinto
pelas vielas pobres do fado,
as velocidades do absinto,
o som das estrelas alapado.
satélites observavam-me
orbitando na fria exosfera
e as multidões levavam-me
por entre a confusão austera.
colocaram-me em frente à tv
para escolher cinquenta canais,
para saber o que cada um crê
e todos eles eram iguais.
tentei encontrar o meu caminho
através dos lassos dias brancos,
mas rasgaram-me como linho
e prostrei-me nos sujos ancos.
debaixo de um pôr-do-sol tinto,
vi o progresso estagnado.
coloquei tudo o que sinto
na estabilidade do mercado.
.
domingo, 29 de junho de 2008
Alentejo
A passagem da tarde era tortuosa, o calor arrastava-se pelos cabeços, a sombra estava escondida nas árvores, lugar nenhum estava abrigado do sol desértico. Era a esta hora que Maria e Luís se encontravam no lagar, onde a frescura interior das paredes os envolvia. Não se encontrava vivalma na rua, estavam seguros. Ele despiu-lhe a camisa com sofreguidão, enquanto lhe beijava o pescoço e tentava ensinar as mãos a decorar todo aquele corpo latejante de desejo. O Alentejo em Junho é uma flama fulva que atravessa a pele e queima as superfícies, pintando-as de um âmbar triste e suado. As pessoas recolhem-se para dentro de casa onde ocupam o tempo como podem. Os que vivem perto do litoral vão redescobrir a turquesa do Atlântico domesticado. Os outros estão condenados à pobreza e ao calor obsidiante. Ali, no lagar, era uma fuga que tomava lugar. Corpos adolescentes a descobrirem as cascatas fictícias da juventude com apenas os aracnídeos caseiros a observarem silenciosos.
- O tempo que passei a pensar em ti é todo um outro ser vivo que existe na Terra. – sussurou Luís.
A tarde passou, imperial e vagarosamente, não deixando antever qualquer suspiro do vento na cálida rua. E ela ouviu toda a dissertação de uma enorme melopeia que ele gravava na sua pele. O anoitecer veio atrasado, como de costume nesta altura do ano, e como que pedindo desculpa trouxe consigo uma fresca aragem que convidava as pessoas a sairem dos seus invólucros de cal. Deixaram o lagar, e as mãos que se separavam eram correntes que se partiam. Tinham ambos sempre que chegar a casa antes das dezanove horas, porque ninguém admitia atrasos à sagrada hora de refeição. Enquanto apressavam o passo em direcção ás suas casas, em caminhos separados, seguravam o terço suspenso por um fio no pescoço pedindo ao Messias que segurasse por mais uns minutos os ecos metálicos do sino da igreja. E o filho de Deus acedia sempre ao pedido.
Passaram a noite a pensar num futuro cúmplice longe daquele deserto.
O dia seguinte acordou com um sobressalto. Os gritos enchiam a aldeia. Alguém correra para a praça em pânico e ali se prostrara no chão, chorando convulsivamente. Os aldeões aproximaram-se daquela mãe atormentada, e tentaram perceber o que se passava.
- O Luís... – disse tremulamente a mulher.
Quando Maria acordou, a sua mãe estava sentada num banco ao lado da cama, com a penumbra da janela a iluminar-lhe apenas metade da soturnidade na sua face.
Os Conquistadores do Banco Partido
Veio da apatia das nódoas negras, o mega qualquer coisa, apresentar-se como absoluto e contar como é que reocuparam o mundo:
Eram 5. Mais por vezes, mas sempre os mesmos: o Vash e os outros, como eu.
Reuníamo-nos no local do costume com as pessoas de sempre. Lutávamos calados, silenciosos nos nossos enigmas, mesmo na melancolia da chuva que apenas nos molhava o ardor de querer ser um pouco mais.
Eram desígnios superiores aqueles. A quê, não sei.
Prometíamos um mundo melhor. Parados.
Pensámos que valia a pena, mas resolvemos não batalhar. Só havia guerra nas nossas ideias e em mais lado nenhum.
Conversávamos vezes sem conta. Falámos do mesmo, dissemos diferente.
Havia fé mesmo na terra dos corações partidos.
Aceitámo-nos e com isso o nosso destino. Conquistámos amizade e agora só faltava o mundo.
E ríamos, cada um à sua maneira e no seu tempo.
Comíamos bolos, açucarando a alienação vigente: quando todos pensavam, ninguém dizia - era o pacto.
Descansámos de medo, uns renderam-se, outros não. Não houve muitas vinganças senão todas as que fizemos.
O mundo não agradeceu e que eu saiba não se importou o suficiente,
E o quengorama de paixão não levou tudo. Sobrámos nós. Só nós.
Os conquistadores do banco partido, onde alguns se sentavam nele, esfarrapado em comunhão com a solidão, partido como almas perdidas, graciosamente desprovido de graça.
A glória ainda espera paciente até que um ou todos de nós resolvam mudar o mundo. Até lá encontramo-nos com a fermentação da cevada na fermentação dos nossos espíritos enquanto o silêncio sussurra a sua vontade.
Na alegoria da noite, o ébrio sulco em alguns corações debita algumas palavras na eterna procura da verdadeira arte.
A arte de não dizer, para não saber ser infeliz, como o banco partido, tantas vezes conquistado por nós.
Omega